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quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Voto distrital torna mais fácil escolher políticos melhores (J.R. Guzzo - VEJA)


O voto distrital torna mais fácil escolher políticos melhores

26 de dezembro de 2012 
Autor: J.R. Guzzo
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J.R. Guzzo
Este é um ano em que o brasileiro comum e a Justiça fizeram as pazes. Não em tudo, é claro, porque não é possível chegar nem perto disso, mas o público, finalmente, teve a satisfação de ver gente poderosa ser condenada a penas de prisão. É muito bom que isso tenha acontecido e, quanto mais acontecer, melhor será para todos. Continua exatamente do mesmo tamanho, entretanto, o problema que está na raiz de toda essa história: os delinquentes condenados pelo STF não entraram no governo à força, nem por obra do Divino Espírito Santo. Quem os colocou no poder, ou lhes deu acesso ao Erário, foi o eleitorado brasileiro — diretamente, ou por influência dos políticos que elegeu. É uma coisa desagradável de dizer, claro. Mas na vida real é isso, precisamente, que acontece — e aí não há supremo tribunal que resolva, nem com o rei Salomão na presidência dos trabalhos.

O fato, para falar português claro, é que o brasileiro vota muito mal. E uma dessas coisas que se falam em conversas particulares, mas raramente em público — seria preconceito, elitismo ou fobia ao povo. Tudo bem, mas a realidade é a realidade. O deputado federal mais votado do Brasil é o palhaço Tiririca, de São Paulo, que se elegeu em 2010 com 1,3 milhão de votos e o lema “Tiririca, pior do que está não fica”. O Ministério Público registra, só no ano de 2012, a abertura de 10000 inquéritos para apurar crimes de corrupção e atos de improbidade administrativa. Dos atuais deputados e senadores, mais de 250 respondem a processos penais — possivelmente, um recorde mundial. Não existe, fora das penitenciárias, nenhum lugar onde o porcentual da população acusada de crimes supere os números encontrados no Congresso Nacional.
O que dificulta o debate do voto distrital, no fim da contas, não são as suas falhas, e sim as suas virtudes
Mais exemplos? Perfeitamente. O deputado federal Natan Donadon, de Rondônia, condenado por desvio de dinheiro público a treze anos de cadeia, em 2010, continua no seu cargo — nas últimas eleições parlamentares, nesse mesmo ano de 2010, foi reeleito com mais de 40000 votos. O deputado Paulo Maluf, de São Paulo, que só pode viver solto no Brasil — será preso se puser os pés fora do país, por ter contra si um mandado internacional de captura —, recebeu 500000 votos na eleição de 2010; como muitos outros, tem conseguido se safar da Lei da Ficha Limpa, aprovada pelo Congresso num momento de susto diante de um projeto apoiado por 1,6 milhão de assinaturas populares. O grande herói de todos eles é o deputado José Geraldo Riva, de Mato Grosso, que tem nas costas 102 processos por improbidade, responde a vinte ações penais e é considerado o maior “ficha-suja” do Brasil. Apesar de todo esse prontuário, foi reeleito tranquilamente dois anos atrás, e continua dando ordens na política mato-grossense. Será que isso tudo não está dizendo que o eleitorado brasileiro vota mal?
Há outro fato incômodo: o eleitorado vota mal porque é ignorante. De novo, muita gente boa fica horrorizada ao ouvir uma coisa dessas. Mas como alguém poderia sustentar o contrário num país onde 75% da população entre os 15 e os 64 anos de idade não consegue ler, escrever nem calcular plenamente? Ou seja: só um quarto dos brasileiros adultos é capaz de entender realmente o que lê, de escrever o que realmente quer dizer e de continuar aprendendo com a utilização dessas habilidades. As demais pessoas adultas não apenas são ignorantes; estão travadas na ignorância, pois o que sabem não é suficiente para que possam aprender mais. Não podem fazer as mesmas coisas que os cidadãos instruídos. Têm os mesmos direitos, mas não têm as mesmas capacidades. São iguais perante a lei, mas não perante a vida. Trata-se de uma verdade amarrada em fas. Horrível não é dizer que o eleitorado é ignorante; horrível é que ele seja ignorante.
Quem considera que isso é um insulto ao povo fica convidado a demonstrar como é possível algum país ter, ao mesmo tempo, três quartos de sua população adulta vivendo no analfabetismo funcional e eleitores capacitados a identificar com clareza os seus interesses. Não dá. “Seria demagógico supor que a qualidade das decisões que uma pessoa toma não muda com melhorias radicais de instrução”, escreve o economista Gustavo Ioschpe, um dos mais competentes especialistas brasileiros na área da educação. É isso. O eleitorado não é ruim, nem bom, pelo fato de ser semianalfabeto. Também não tem nenhuma obrigação de votar bem; tem apenas o direito de votar em quem quiser. Mas é inevitável que a ignorância produza consequências concretas; eleitores sem interesse em política, desinformados sobre a vida pública, indiferentes à própria cidadania e que votam basicamente por obrigação, para ter os documentos “em ordem”, tendem naturalmente a escolher mal. Ou não?
Sendo as coisas o que são, a questão que se coloca é a de sempre: que fazer? Não é possível, por exemplo, zerar tudo e só dar o título de eleitor a quem passar num exame de conhecimentos gerais do tipo Enem. É inviável, igualmente, terceirizar as eleições brasileiras para outro país — convocar o eleitorado da Alemanha, digamos, para votar nas nossas eleições, na suposição de que os alemães são mais instruídos e, portanto, escolheriam melhor. A saída mais viável, no aqui e ago-ra, é desmontar o atual conjunto de regras eleitorais e colocar no seu lugar um novo sistema de eleições para deputados e senadores — os que escrevem e aprovam todas as leis vigentes no país. O objetivo é muito simples: tomar mais fácil para o eleitorado brasileiro, tal como ele é hoje, a escolha de políticos mais bem qualificados para trabalhar pelos interesses reais da população — e, ao mesmo tempo, tomar mais difícil a eleição sistemática dos vigaristas, escroques e parasitas que são o resultado inevitável da maneira como se vota hoje no Brasil. Esse novo sistema se chama voto distrital; está em uso desde sempre nas democracias mais bem-sucedidas do mundo, e é o alicerce para qualquer reforma política séria que se pretenda fazer no país.
A melhor recomendação em favor do voto distrital é o pavor que a grande maioria dos políticos brasileiros tem dele. Sabem muito bem o estrago que isso pode fazer no sistema eleitoral em vigor — e tudo o que querem é deixar as coisas exatamente como estão, ou se possível ainda piores, porque são os únicos beneficiários da presente situação. Seu principal argumento é dizer que o voto distrital é uma coisa complicadíssima, impossível de ser entendida pelos neurônios disponíveis no eleitorado — e, portanto, uma solução “inviável”. Pura tapeação. Não se trata de nenhum problema de trigonometria esférica, ou algo assim. Na verdade, é uma maneira muito simples de votar; até jornalistas são capazes de escrever a respeito. O voto distrital é um sistema destinado, basicamente, à eleição das pessoas que vão formar o Poder Legislativo, e se amarra no princípio segundo o qual cada eleitor tem um voto — nem mais, nem menos. O voto de um, portanto, tem de ter exatamente o mesmo peso do voto de outro. Numa eleição desse tipo, em linhas gerais, o Brasil seria dividido em 513 distritos — que é o número de cadeiras existente hoje na Câmara dos Deputados. Cada distrito teria, com pequenas diferenças, a mesma quantidade de eleitores — cerca de 270 000, considerando-se a divisão dos atuais 140 milhões de eleitores brasileiros pelos 513 lugares que há na Câmara. Cada partido apresentaria um, e apenas um, candidato por distrito. Cada distrito elegeria um, e apenas um, deputado federal — aquele que recebesse mais votos no território distrital, como acontece hoje com prefeitos e governadores.
O estado de Minas Gerais, por exemplo, tem hoje 15 milhões de eleitores; seria dividido em 55 distritos, e teria assim 55 deputados, em vez dos 53 que tem agora. O estado da Bahia, com 10 milhões de eleitores, ficaria com 37 distritos e igual número de parlamentares, ou dois a menos que os 39 que manda atualmente para Brasília. As grandes modificações ficam para os extremos. O estado de São Paulo, que, com 31 milhões de eleitores, reúne o maior eleitorado do Brasil, saltaria dos setenta deputados federais que tem hoje para 114; o estado de Roraima, que é o menor de todos, com menos de 300000 eleitores, ficaria só com um representante, em vez dos oito atuais. A mudança é grande porque a distorção que existe no presente sistema também é grande. Por uma trapaça numérica, a lei em vigor fixa um teto máximo de setenta deputados por estado; mas esqueceu de fixar qual a população que cada estado brasileiro pode ter, e o resultado é que o estado mais populoso do Brasil não tem direito de eleger os representantes que lhe caberiam. Na outra ponta existe um piso mínimo de oito deputados por estado, e unidades como Roraima acabam com um número de deputados desproporcional à sua população.
A conta é simples. Em São Paulo, aritmeticamente, é preciso quase 450000 cidadãos para eleger um deputado; em Roraima bastam 37 500. O que dá mais ou menos valor ao voto de um cidadão, pelo sistema vigente, é o seu endereço residencial. Não haveria, numa mudança dessas, nenhum favorecimento a São Paulo, nem aos “paulistas”, como pregam os inimigos do voto distrital; favorecidos seriam os brasileiros que moram em São Paulo, qualquer que seja o lugar onde tenham nascido. Que culpa têm por viver ali? Por que o seu voto deveria valer menos? O equilíbrio entre os estados, igualmente, não seria prejudicado: cada uma das 27 unidades da federação continuaria tendo três senadores, independentemente do tamanho do seu eleitorado. Haverá, é claro, distritos com territórios muito maiores que outros, mas o número de eleitores será equivalente em cada um deles. Qual é o pecado? Na verdade, embora a justiça e a lógica do princípio “um homem, um voto” desagradem por instinto aos políticos brasileiros, não é esse o seu principal problema. O que realmente os assusta no voto distrital é tudo aquilo que vem com ele.
O novo sistema, para começar, acabaria com os Tiriricas e Malufs. Eles teriam de se candidatar por um único distrito, e só poderiam ser votados ali — e não mais no estado inteiro, da mesma forma como um candidato de Goiás, por exemplo, não pode receber votos no Paraná. Já é duvidoso, em primeiro lugar, que fossem eleitos. Teriam de enfrentar, mano a mano, candidatos fortes no seu distrito, em vez de concorrerem sem adversários definidos, como ocorre na geleia geral de hoje. Além disso, acaba a farra das “sobras” — os votos excedentes que recebem e servem para eleger um monte de zés-ninguém que tiveram votações miseráveis. Elimina-se a necessidade de gastar fortunas correndo atrás de votos no estado inteiro, o que só favorece os candidatos com mais dinheiro. No horário eleitoral obrigatório só vão aparecer os concorrentes do distrito onde vive o eleitor — o que simplifica decisivamente a sua escolha. Os partidos nanicos, que em geral são apenas gangues montadas para extorquir governos, tendem a sumir do mapa. Mais que tudo, os deputados estarão sempre cara a cara com os eleitores de seu distrito, e terão de explicar diretamente a eles, a cada eleição, o que fizeram no seu mandato. Por que aumentaram o próprio salário? Por que empregaram tantos parentes? Por que não cassaram o colega ladrão? Por que não fizeram nada de útil? Os candidatos adversários, com certeza, não vão se esquecer de fazer essas cobranças. Para nenhum deputado haverá a possibilidade de recuperar em outros lugares do estado os votos que perdeu em seu distrito.
O que está escrito aí acima não é um projeto de lei, algo que exige conhecimentos técnicos e respostas para detalhes importantes do processo eleitoral; é apenas um artigo de revista. Ninguém pretende, igualmente, sustentar que o voto distrital resolveria “tudo” — nada é capaz de resolver tudo de uma vez. É apenas um primeiro passo, mas sem ele não se começa a caminhada até o ponto ao qual é preciso chegar. O que dificulta o debate do voto distrital, no fim da contas, não são as suas falhas, e sim as suas virtudes. Elas desmancham um sistema que mantém o Brasil do jeito que está hoje, e só interessa aos políticos — que, naturalmente, não se animam a mudar algo que os favorece. É uma lei da natureza. “As espécies são capazes de desenvolver instintos que as protegem”, escreveu Charles Darwin em A Origem das Espécies. “Mas nenhuma espécie desenvolve instintos em benefício de outra.”
Eis aí o sistema eleitoral brasileiro, descrito cientificamente. Entregue aos políticos, só mudará para pior.
Fonte: revista “Veja”

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